segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Homenagem a Michael Jackson: “O anjo da madrugada”

Bom dia Soldiers,

É madrugada ainda, altas horas que não se sabe ao certo precisar. Em algum recanto da cidade dos anjos, a noite emana com maestria seu estranho fluido soporífero. O silêncio nobremente predomina. Uma velha coruja em algum lugar emite um pio longo e agudo, como que um sombrio vaticínio. Um morcego corta o ar, ruflando suas asas, e um gato pula depressa o muro que dava acesso a uma casa ainda desperta. Um dos anjos que viviam ali, por unanimidade o mais soberano de todos, revirava-se na cama em meio a uma série de imagens inquietantes.
Primeiro, um garotinho franzino, em desabalada correria para escapar de um homem de porte avantajado, com a carranca cheia de sinais escondida por barba e bigode escuros e espessos. O homem o perseguia incansavelmente, obstinadamente, como se nada no mundo o agradasse mais naquele momento do que capturar e machucar aquele pobre menino. Uma barra de ferro na mão. Nos olhos, o mesmo brilho ferino dos olhos das feras mais desvairadas; na boca, palavras tão dilacerantes como a lâmina de uma navalha; no coração, o instinto humano mais primitivo e recalcado de todos, agora vivamente aflorado. Cuspiria fogo, certamente, se um mínimo de sangue draconiano existisse em suas veias dilatadas. O menino, lépido em vida e em arte, adentra o primeiro quarto que encontra e tranca a porta, no exato momento da iminente captura. Recosta-se à porta e desliza rente a ela até o chão, resfolegante, enquanto seu carrasco brame desesperado do lado de fora. O menino traga duas golfadas de ar, e deixa escapar um leve sorriso.
Em um átimo, a imagem se desvanece e esvai-se. Tudo em volta principia a girar como um carrossel descontrolado. Muitas cores se misturam, entre o som de tambores e de vozes femininas histéricas. O mesmo menino reaparece agora trajado em puro verde, camisa comprida de gola alta e calça boca-de-sino, botas brancas em simetria com a gola e as sortidas abotoaduras da roupa. À sua esquerda, bem como à sua direita, dois garotos mais velhos trajados igualmente; à sua frente, um reluzente microfone empoleirado na mesma barra de ferro com que fora anteriormente perseguido, e um convite para fazer a magia acontecer. Os cinco garotos rodopiam, e o mais novo, no meio, liberta a voz há muito contida na garganta. Um canto agudo e penetrante, que mesmo o ouvido menos treinado reconheceria de longe. Palmas, clangores metálicos e vozes excitadas ressoam, enquanto a roda de Morfeu reinicia seu giro impiedoso, apagando qualquer vestígio visual outrora apresentado.
Um baque surdo de panelas, uma cozinha e um rapaz de quase trinta primaveras recostado na pia. Sim, é o mesmo menino, modificado fisicamente pelo tempo, mas cuja alma infantil insistira em permanecer incólume, intocada, inalterada. Cantarolava alguma coisa ininteligível, à guisa de um fadinho português ou uma barcarola italiana. Em um estalo da própria língua, tamborila o perímetro da pia com os dedos, e segue repetindo os gestos. Cantarola, estala, tamborila; tamborila, estala e cantarola. Fez-se o fruto da ociosidade. Um piscar de olhos, e os gestos ainda permanecem, agora entre bolas de gude gigantes e uma enxurrada multicolorida de paralelepípedos. A roupa verde cede seu lugar a um elegante fraque; o fraque, por sua vez, é substituído por uma suntuosa vestimenta refulgente de cristais. Muitos holofotes milimetricamente posicionados, muitos sorrisos e trejeitos sensualmente planejados.
O cenário volta a girar, e vê-se de relance a figura de um típico dançarino sedutor. Gravata borboleta vermelha em contraste com a camisa rosada, deslizando seus sapatos de verniz por uma longa pista fosforescente, ao passo que um detetive o persegue, ambos embalados pelo ritmo de um irresistível contrabaixo. Depois é um gângster de jaqueta alaranjada que impede o confronto de dois grupos rivais, em meio à desolação de um gueto estadunidense. O cenário continua girando. Gira ensandecido, obedecendo a mecanismos cinéticos peculiares, e despeja inteira uma rua anoitecida e abandonada. Um casal de namorados conversa enquanto caminha. A conversa flui animada, mas é bruscamente interrompida por criaturas escarnecidas e bizarras que surgem por toda parte, seja das covas do cemitério, seja dos bueiros espalhados pela rua. Andam vacilantes, mas decididas, rumo ao casal. A mocinha se agarra involuntariamente ao braço do companheiro, mas o que sente nas mãos é a mesma matéria viscosa e putrefata dos zumbis ao seu redor. Os olhos do rapaz se tornam âmbares, seu rosto decompõe-se, e ele agora é mais um zumbi. Em completo desespero, a mocinha corre buscando um abrigo, mal sabendo ela que após aquela noite nenhum só pé, seja vivo ou morto, conservaria mais sua quietude habitual.
Em um piscar de olhos, tudo é convertido em manchetes e flashes de câmeras fotográficas. Jornais, revistas e tabloides, como que gaviões famintos, voam atrás do pobre homem, que se encontra novamente em desabalada correria, como se sua vida fosse menos que uma eterna perseguição. E cada um deles sabe de cor o nome do homem. E o chamam, e o escrevem, e o cospem. Seu nome duplo, filho ilustre da numerologia e da dicotomia amor e ódio. Neste momento, o homem, que é filho do menino, olha para trás a fim de reconhecer melhor seus algozes. Mas nem todos ali são algozes. Muitos são amigos, mesmo que desconhecidos e sem poder para salvá-lo. No meio da balbúrdia, ele consegue discernir os semblantes sôfregos de duas mulheres: uma senhora negra e idosa, e ao seu lado uma jovem de cabelos vivamente ruivos. As duas choram, e um grito lancinante corta o ar.
Os olhos do rapaz se abrem assustados, despertando-o do devaneio. Os cabelos desgrenhados caem-lhe pelo rosto, empapados pelo suor que minava dos poros da cabeça. O coração batia acelerado, e o fôlego era rarefeito. Havia dias que aquele mesmo pesadelo se repetia, cerceando seus raros e preciosos momentos de sono. O homem afastou as cobertas, sentou-se na cama e passeou o olhar pelo aposento. Era um quarto enorme, cujo tamanho em si podia ser sozinho considerado um luxo. A claridade da lua entrava pelo vidro da janela, desembocando disformemente no chão, do qual se podia distinguir a sombra da copa de uma árvore que chacoalhava em qualquer lugar do lado de fora. O homem estendeu a mão para uma cômoda, tateando em busca dos óculos. Meteu os pés nos chinelos, levantou-se, vestiu um roupão e saiu caminhando até a porta. Parou diante de um espelho, e depois de muito relutar, mirou-se.
Tinha o rosto endurecido e cansado, marcado de cicatrizes, a pele macilenta e embranquecida pelos anos longe do sol. Todavia, o rosto não era capaz de denunciar o peso das cinquenta primaveras nas costas do dono. O homem lançou a si próprio um olhar de desaprovação e retomou a caminhada, entrando por um comprido e sombrio corredor. Sentia um estranho rebuliço por dentro, mas não sabia explicar ao certo do que se tratava. Decerto, era apenas uma sequela passageira do pesadelo que tivera. Parecia um pouco aborrecido, mas foi com serenidade que bateu a porta de outro quarto, cuja luz escapava pelas brechas, evidenciando que seu ocupante ainda estava acordado, a despeito do horário tardio.
- Quem é? – pronunciou o ocupante do quarto.
- Sou eu… Desculpe-me por incomodá-lo, mas preciso dos seus préstimos.
Fizeram-se alguns minutos de silêncio, seguidos de estrépitos metálicos e resmungos. Um homem negro e calvo saiu do quarto. Os olhos desconfiados e medrosos fitaram o interlocutor com determinação.
- Sei o que você veio procurar, mas não sei se devo cedê-lo…
- Tenho certeza que você sabe o quanto isso é importante para mim. Fui bem claro antes de contratá-lo…
- Não desminto que tenha sido, mas ainda assim fico receoso.
- Eu sou apenas um pobre homem que precisa de um pouco mais de descanso para prosseguir com essa rotina diária de ensaios. Por favor, não me negue essa oportunidade. Eu vivo completamente desesperado, e você sabe disso!…
- Está bem, está bem… Espere-me. Irei procurá-lo dentro de alguns instantes, depois que aprontar tudo… – disse o homem calvo, que era médico particular do primeiro.
- Fico agradecido… Realmente muito agradecido.
O primeiro homem desejou boa noite ao segundo, e retornou para o seu quarto com a alma mais calma. O mundo inteiro ficaria chocado ao amanhecer, mas por enquanto aquela ainda era uma madrugada qualquer, em que às escuras um anjo era involuntariamente preparado para realizar seu último voo.
Fonte: News Press Release's

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